TJRJ. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C TUTELA DE URGÊNCIA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. ATO ADMINISTRATIVO QUE INDEFERIU A PARTICIPAÇÃO DO AUTOR EM CERTAME PARA ELEIÇÃO DE MEMBROS DO CONSELHO TUTELAR MUNICIPAL, NA ETAPA DE EXAME SOCIAL. IDENTIFICAÇÃO DE ANOTAÇÕES CRIMINAIS SUPOSTAMENTE DESABONADORAS. ALEGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DE REQUISITOS. VIOLAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DO MPRJ E DO MRJ.
1. A presente hipótese não cuida de exame judicial sobre mérito administrativo (juízo de conveniência e oportunidade), pois o enquadramento fático jurídico de determinada conduta do candidato como «moralmente idônea» ou «inidônea» não cuida de mero exercício da discricionariedade administrativa. 2. Na verdade, a expressão «idoneidade moral» constitui conceito jurídico indeterminado, exsurgindo para o administrador uma certa margem de apreciação que não se confunde com a discricionariedade propriamente dita. 3. A interpretação a respeito do que seria «idoneidade moral» não se afigura judicialmente insindicável, mormente à luz da teoria dos motivos determinantes, segundo a qual, a motivação expressamente apontada pelo administrador vincula a administração, atraindo o controle pelo Poder Judiciário da juridicidade das razões esposadas. 4. O STF diversas vezes enfrentou a questão a respeito dos efeitos materiais do princípio da presunção de inocência (CF/88, art. 5º, LVII), especialmente no tocante aos mais diversos concursos públicos, culminando na tese de que, «[s]em previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal» (Tema 22/RG). 5. O fato de semelhante cláusula estar expressa ou implícita nos chamados exames «sociais» ou «morais» se afigura irrelevante, pois a razão de decidir do STF se assenta no fato de que «a simples existência de inquéritos ou processos penais em curso não autoriza a eliminação de candidatos em concursos públicos". 6. Na mesma linha, a jurisprudência do STJ caminha no sentido de que a simples instauração de inquérito policial, firmação de termo circunstanciado ou protocolização de denúncia de ação penal, não são causas legítimas para excluir candidato de concurso público (AgInt no REsp. Acórdão/STJ, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 19/6/2023, DJe de 27/6/2023). 7. Complexificando a questão, porém, a Corte Suprema abriu exceção na mesma tese, aduzindo que a «lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determinados cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas, como é o caso, por exemplo, das carreiras da magistratura, das funções essenciais à justiça e da segurança pública (CF/88/1988, art. 144), sendo vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade» (STF, RE 560900, Ementa, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 06-02-2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-204 DIVULG 14-08-2020 PUBLIC 17-08-2020). 8. Certo é que a «idoneidade moral decorrente do princípio da moralidade administrativa não pode ser confundida com moralismo» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 12), pelo que não há como considerar moralmente inidôneo determinando candidato pelo simples fato dele ser ou pertencer a determinada raça, etnia, gênero, nacionalidade, religião, orientação sexual, etc. ou mesmo pelo fato de apresentar hábito ou defender doutrina político-ideológica excêntrica, desde que albergada no âmbito deste Estado de Direito. 9. Nesta toada, em regra, a jurisprudência dominante deste sodalício fluminense aponta que, se a conduta se afigura penalmente irrelevante, ou se ao menos careceu de qualquer repercussão penal, tem-se, em princípio, por juridicamente irrelevante para os fins de investigação social. Precedentes. 10. Havendo, entretanto, repercussão penal, ainda que pré-processual (como ocorre nestes autos), o douto Ministro Relator do RE 560900 recomenda a «formulação de critérios razoavelmente objetivos para aferir a idoneidade moral, relacionados a processos penais em curso contra o candidato, com referência, no mínimo, aos seguintes aspectos: (i) fase em que se encontra o processo; e (ii) relação de pertinência (incompatibilidade) entre a acusação e o cargo em questão» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 15). 11. Sugere, ainda, que mesmo havendo condenação definitiva do candidato, nem toda infração penal pode ser vista como desabonadora, isso porque, à luz do CP, art. 92, sequer é efeito da condenação a perda da função pública, nos casos de aplicação da sanção de pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração, ou por tempo superior a quatro anos, nos demais casos. 12. E mesmo que a perda do cargo, emprego ou função pública possa decorrer da condenação, esse feito não é automático (CP, art. 92, parágrafo único), de modo que «nem todas as condenações criminais colegiadas ou definitivas devem implicar, automaticamente, a eliminação de candidatos de concursos, mas apenas aquelas que revelem, em razão da natureza do crime apurado, uma incompatibilidade com os pressupostos necessários ao exercício da função pública em questão» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 19). 13. Não se podendo olvidar que a «necessidade de um nexo entre a acusação e as atribuições do cargo em exame coaduna-se não apenas com o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade - particularmente o subprincípio da adequação -, mas também com o art. 37, II, da Constituição, segundo o qual os critérios de seleção adotados em concursos públicos deverão observar a natureza e a complexidade do cargo ou emprego» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 19). 14. Por conseguinte, para determinadas carreiras públicas - exemplificativamente, as relacionadas à magistratura, às funções essenciais da justiça (v.g. Ministério Público, Defensoria Pública, etc.) e à segurança pública -, autoriza-se «um controle de idoneidade moral mais estrito em razão das atribuições envolvidas, razão pela qual, em princípio, são incompatíveis com quaisquer condenações criminais, salvo casos excepcionais» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 20). 15. Não obstante, apenas e tão somente a lei, em sentido formal ou material, «pode vir a reforçar o controle de acesso a tais cargos, dispondo, por exemplo, que eventual condenação judicial em primeira instância, ou mesmo a imposição administrativa de pena por infração disciplinar (respeitado, em qualquer caso, o contraditório), seria suficiente para a eliminação de candidato em concurso público» (voto do Exmo. Sr. Min. Relator, pág. 20). 16. Nesta esteira, a jurisprudência dominante do TJRJ, de modo coerente, tem reputado como ilegítima, a exclusão de candidato quando eventual inquérito penal em que tenha constado como indiciado, acusado ou investigado tenha sido arquivado por ausência de justa causa para formalização da denúncia, ou no caso de prescrição da pretensão punitiva. Precedentes. 17. Aliás, ainda que o inquérito tenha evoluído para um efetivo processo penal (isto é, com a apresentação de denúncia), se este vem a ser arquivado antes mesmo da citação do réu (que sequer teve conhecimento do fato), também não é causa legítima para excluir o candidato. Precedente. 18. E mais, se proposta a ação penal, mas o candidato vem a ser absolvido, independentemente se o foi por mais de uma imputação, não pode, em tese, ser considerado moralmente inidôneo. Precedente. 19. Vale dizer que, anteriormente ao julgamento do Tema 22/RG, e no que tange especificamente aos candidatos a cargo de conselheiro tutelar, a jurisprudência do TJRJ era mais restritiva, pontuando que a existência de condenação criminal transitada em julgado é suficientemente desabonadora, mas também o seria a mera existência de ação penal contra o candidato. Precedentes. 20. Tais precedentes, decerto, se encontram superados pelo atual estado da jurisprudência, como até aqui parece cristalino, não podendo mais serem reputados como «good law". Por conseguinte, e à luz do caso presente, tem-se que o simples fato do apelado possuir ou ter possuído quatro anotações criminais em sua folha de antecedentes (cujas circunstâncias sequer são esclarecidas pelo Ministério Público estadual), e de que constava com anotação relativa a processo por crime de menor potencial ofensivo (autos 0141326-81.2016.8.19.0001), não são motivos suficientes para excluí-lo do certame. 21. Note-se que o dito processo por crime de menor potencial ofensivo cuidava de suposto crime de «usurpação de função pública» (CP, art. 328, caput), que consta como arquivado a pedido expresso do Parquet naqueles autos, pois, segundo o órgão ministerial, «[n]ão há nos autos elementos que demostrem ter o autor do fato agido com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, não havendo comprovação de que tenha atuado efetivamente se dizendo conselheiro tutelar» (manifestação datada de 24.01.2017). 22. Já quanto às quatro anotações criminais alardeadas pelo Ministério Público, verifica-se que sequer constam no respectivo «Sistema de Identificação Criminal"; outrossim, também foram juntadas pelo candidato certidões de nada consta contemporâneas ao certame, sem qualquer menção das supostas anotações criminais pretensamente desabonadoras. 23. É de bom alvitre assentar que o relato pormenorizado de prática inaceitável e atentatória à dignidade de criança ou adolescente pelo candidato à vaga no conselho tutelar, independentemente de eventual distribuição de ação penal, certamente o desabona, hipótese, entretanto, diversa da destes autos. 24. De mais a mais, no tocante ao suposto não cumprimento ao disposto no art. 12, § 6º, da Deliberação 1.333/2019 - ASDH/CMDCA, deve-se lembrar que o candidato apelado não postulava recondução ao cargo, a uma, porque sequer terminou o mandato anterior e, a duas, porque só atuou no mandado anterior ante a pendência de tutela antecipada, cujos efeitos restaram sustados com a sentença de improcedência exarada nos autos do processo 0310547-96.2015.8.19.0001 (datada de 02.05.2017), não lhe sendo aplicável, portanto, a exigência específica de «apresentar também um relatório conclusivo das ações desenvolvidas no período do seu mandato, com a assinatura de dois Conselheiros do mesmo conselho tutelar". 25. O ente municipal apelante argumenta, para mais, que o apelado não comprovou a observância de todos os requisitos exigidos nos, I e VI do art. 11 da Deliberação 1333/2016 - ASDH/CMD-CA, e que não foi interposto nenhum recurso administrativo pelo autor. 26. Ora, já se afastou a alegação de não comprovação de «idoneidade moral», portanto cumpre verificar se o candidato apelado demonstrou a atuação profissional exigida pelo «edital". Conforme documento juntado aos autos, consta declaração assinada pelo então Presidente do CMDCA-Rio no sentido de que o apelado exerceu a função de conselheiro tutelar por pouco mais de sete anos, não consecutivos. 27. E depois, a não interposição de eventual recurso administrativo não constitui qualquer óbice à pretensão deduzido pelo apelado, especialmente considerando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que tem assento constitucional (CF/88, art. 5º, XXXV). 28. Por fim, não há de se falar em violação aos princípios da impessoalidade ou da isonomia, pois a atuação judiciária para assegurar os direitos do candidato eventualmente violados por ato arbitrário, ilegítimo e/ou ilegal da administração não constitui outorga de qualquer privilégio, antes reafirma exatamente os mesmos princípios alardeados pelos apelantes. RECURSOS A QUE SE NEGAM PROVIMENTO. CONDENAÇÃO DO ENTE MUNICIPAL AO PAGAMENTO DA TAXA JUDICIÁRIA E EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS.
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