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DOC. 188.5789.1611.6858

TJRJ. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS LEGAIS DO CODIGO CIVIL, art. 1.723. INEXISTÊNCIA DE AFFECTIO MARITALIS E ANIMUS DE CONSTITUIÇÃO FAMILIAR. ACERVO PROBATÓRIO QUE NÃO CORROBORA A ALEGADA CONVIVÊNCIA PÚBLICA, CONTÍNUA E DURADOURA ENTRE OS PRETENSOS COMPANHEIROS. CPC, art. 373, I. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO DE FAMÍLIA PARA APRECIAÇÃO DE DIREITO REAL DE HABITAÇÃO EM SEDE DE TUTELA DE URGÊNCIA. PRIMAZIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.

In casu, foi interposto recurso de apelação contra sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem formulado pela Sra. Mariana Ferreira Barcellos. A apelante busca a reforma da sentença para que seja reconhecida a união estável com o falecido, Sr. Eduardo Gomes da Silva, no período de 09/07/2017 a 08/09/2021, e, consequentemente, que seja concedida a tutela de urgência pleiteada para sua permanência no imóvel que serviu de residência do casal. Inicialmente, salienta-se que, de fato, a pretensão de permanência da autora no imóvel onde teria residido com o de cujus possui natureza orfanológica. Ou seja, a questão relativa ao destino dos bens que compõem o monte, incluindo o direito real de habitação da companheira, efetivamente, deve ser dirimida no bojo do processo de inventário. Nessa toada, a alegação da apelante de que não poderia dirigir tal pleito ao juízo orfanológico por ainda não ostentar a condição jurídica de companheira não se sustenta. Como cediço, o direito real de habitação, previsto no CCB, art. 1.831, é um direito sucessório que independe do reconhecimento formal da união estável para sua postulação no inventário. Aqui não se olvida que a discussão sobre a qualidade de companheira é, sim, relevante para o reconhecimento do direito, mas a competência para decidir sobre a destinação do bem e eventual concessão da moradia, ainda assim, notadamente, é do juízo sucessório. Tal entendimento prestigia o princípio da especialidade da jurisdição, que atribui a cada ramo do Judiciário a competência para julgar matérias específicas, evitando a usurpação de competência entre juízos. Não por outra razão, a decisão de indeferimento da tutela de urgência deve ser mantida. Avançando na análise do caso, tem-se que a mera afetividade ou a aparência de uma relação estável não são suficientes para a intentada configuração de união estável. A interpretação dos requisitos previstos no art. 1.723 do CC/02 deve ser feita à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, da proteção à família (CF/88, art. 226) e do princípio da boa-fé objetiva, que impõe condutas leais e transparentes nas relações jurídicas. Nesse trilhar, verifica-se que a prova produzida nos autos não demonstrou de forma cabal a existência da affectio maritalis e dos demais requisitos legais pertinentes. Ora, embora haja indícios de um relacionamento afetivo, como as fotografias apresentadas, destaca-se a ausência de provas seguras quanto ao início e duração da relação, bem como à sua estabilidade e continuidade. No ponto, enfatiza-se que a apelante alega ter residido com o falecido de 09 de julho de 2017 a 08 de setembro de 2021, contudo, o único comprovante de residência colacionado em nome da autora nesse imóvel é datado de novembro de 2021, ou seja, após o óbito de Eduardo. De mais a mais, comprovantes de residência em nome da mãe da autora ou de uma compra entregue na casa do de cujus, por si sós, não são aptos a demonstrar a constituição de uma família durante o período alegado. Outrossim, a declaração de associação de moradores, datada após o óbito, como bem observado na sentença vergastada, apenas atesta a residência atual da recorrente, sem informar sobre o período ou a natureza da relação aqui perscrutada. Outro ponto de suma relevância é o fato de o nome do suposto companheiro jamais ter sido mencionado no CadÚnico da autora para recebimento do «Bolsa Família», como confirmado pela própria em depoimento pessoal, o que consubstancia-se em um forte indício da ausência de um núcleo familiar minimamente estabelecido, considerado o princípio da veracidade nas declarações prestadas para fins de benefícios sociais. Ainda mais além, a autora, em depoimento pessoal, afirmou ter planejado a lavratura de uma escritura de união estável, mas informou que Eduardo sempre sugeria adiar, o que corrobora a ausência de um propósito bilateral e firme de constituição de família. Ressalta-se que as testemunhas arroladas pela recorrente, embora a considerassem «esposa» ou «casada», basearam suas impressões em observações superficiais, como demonstrações de afeto em eventos sociais ou viagens. Tais impressões particulares não demonstram o início, tempo de duração, ou a comunhão de desígnios para formação de família. Observa-se, também, que a escritura pública em que a sobrinha do de cujus reconhece o vínculo de união estável aqui em debate constitui mera prova da declaração, e não do fato declarado, especialmente se considerado o fato de que a declarante era antiga empregadora da autora. Assim, evocando-se o princípio da persuasão racional do juiz, não há razão para vincular-se o deslinde da controvérsia a uma única declaração isolada. Na espécie, como bem se colhe da pormenorizada análise dos autos, a demandante não se desincumbiu a contento do ônus de comprovar o direito vindicado na exordial. Nesse contexto, consigna-se que a sentença do 2º Juizado Especial Federal de Niterói/RJ, que julgou procedente o pedido da autora para condenar o INSS a conceder-lhe pensão por morte, não vincula o presente juízo da Vara de Família quanto ao reconhecimento da união estável. Como de sabença geral, em ações previdenciárias, a questão da união estável é analisada como uma prejudicial de mérito, não servindo à usurpação da competência da Justiça Estadual para decidir sobre o seu efetivo reconhecimento. Tal distinção se fundamenta no princípio da independência das jurisdições e na autonomia dos ramos do Direito, onde a decisão proferida em um âmbito não vincula automaticamente outro, salvo expressa previsão legal, o que aqui não ocorre. Portanto, a decisão na esfera previdenciária não impõe o reconhecimento da união estável no âmbito do Direito de Família. Assim, diante do conjunto probatório coligido nos autos, verifica-se que a apelante não logrou êxito em demonstrar a coexistência dos requisitos legais para o reconhecimento da união estável, especialmente a affectio maritalis, ou seja, o objetivo de constituição de família, que é o elemento distintivo dessa relação de outras modalidades de convivência afetiva. Portanto, a manutenção da improcedência da ação é medida que se impõe, ante a ausência de elementos probatórios robustos e inequívocos que comprovem a união estável nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, em máximo respeito ao princípio da segurança jurídica, que exige clareza e solidez na constituição de direitos de tamanha relevância, especialmente em litígios post mortem que impactam a ordem sucessória. Recurso conhecido e desprovido.

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